Nas suas notas, Augusto Zita N’Gonguenho revela como a estrada do Namibe ao Tombwa representam o que ele chamou de “canal de Abraxa”, em referência à Utopia de More, uma ilha separada do continente por um canal artificial, uma fronteira que divide o território colonizado e, portanto, “civilizado” com o que “os Utopianos” viam como a selva “não civilizada” que se encontrava além dele.
Em contraste com esta fronteira, Zita propôs uma “linha do pensamento”, um limiar fluido e instável de possibilidades infinitas, e o momento em que dois paradigmas opostos se cruzam e colidem, provocando uma mudança fundacional. Contrapondo-se ao projeto iluminista da colonização (representado pelos postes de eletricidade), a linha de Zita é um movimento de pensamento que evolui criativamente e produz novas formas de entendimento, em vez de se ancorar às linhas reconhecíveis do pensamento e conhecimento filosófico ocidental.
Zita utilizou esta "linha" para iluminar não só as ruínas coloniais (das casas dos Cantoneiros e dos postes de eletricidade), mas também o "espaço negro" dentro e fora delas, as histórias desconhecidas e apagadas e as epistemologias africanas que o colonialismo tentou silenciar. Zita viu estes espaços negros como domínios generativos de conhecimento infinito.
A fim de iluminar este conceito, encenámos ao anoitecer uma série de instalações de luz nas casas. Como as casas estão à beira da estrada, os viajantes que por ela circulam tornaram-se um público involuntário, ao mesmo tempo que participavam no processo criativo, pois as luzes dos seus veículos iluminavam a linha reta da estrada e à sua passagem dançavam através das paredes das casas. Documentámos a instalação de luz usando fotografia, focando não só as luzes, mas também os interiores escuros das casas e o céu estrelado da noite.
Canções dos Desaparecidos
Em 12 de julho de 1979, uma sombria e mortal unidade militar do apartheid chamada Delta 40, estacionada no norte da Namíbia, recolheu dois guerrilheiros mortos da SWAPO e atirou-os para o fundo do oceano Atlântico. Este foi o primeiro de centenas de voos mortais realizados pela unidade ultrassecreta das Forças Especiais da África do Sul, que era parte integrante das operações de guerra do apartheid na África do Sul na Namíbia, em Angola, Moçambique, Zimbábue, Lesoto, Suazilândia e Zâmbia.
Inspirando-se nas estratégias elaboradas pelas forças coloniais francesas em Madagáscar e na Argélia, e aperfeiçoadas pelos Estados Unidos e regimes fascistas na América do Sul, o Delta 40 tornou-se o Projeto Barnacle, antes de se transformar no temido Gabinete de Cooperação Civil e expandir as suas operações para incluir tortura, execuções extrajudiciais e a implantação de pseudo-gangues – a prática de transformar o inimigo no seu próprio instrumento mortal.
Além de colaborar com informadores locais e movimentos contrar- revolucionários, o D40 e as suas posteriores encarnações também trabalharam em estreita colaboração com o programa secreto de armas químicas e nucleares da África do Sul e frequentemente usaram produtos químicos e venenos ilegais para eliminar alvos antes de descartar os seus corpos. Em Angola, o seu trabalho complementou as operações da Koevoet, uma unidade secreta de contrainsurgência criada para conduzir operações secretas contra o MPLA a partir do quartel-general em Oshakati, a 140 km da fronteira angolana.
Os voos da morte garantiram imunidade ao governo sul-africano do apartheid por crimes de guerra e graves violações dos direitos humanos cometidas na África Austral, permitindo perpetuar uma cultura de impunidade. Foi esta a forma do regime do apartheid apagar o conhecimento da existência das vítimas e, por extensão, as próprias ideias que elas defendiam.
Com os prisioneiros lançados de aviões no oceano, simplesmente desaparecendo sob as ondas, as autoridades sul-africanas
puderam encobrir as suas operações ilegais e secretas na África Austral e alegar nunca terem estado lá ou que as pessoas tivessem desaparecido sob sua custódia. A probabilidade de os corpos das vítimas serem recuperados para provas é praticamente zero. As feridas dos detidos que foram mutilados pela tortura nunca foram vistas.
Não houve sepulturas para os mortos, impedindo as suas famílias e companheiros de cumprir o luto e de ter locais para os homenagear. As identidades das suas vítimas - que incluíam civis - permanecem em grande parte desconhecidas, enterradas nos escombros dos arquivos que foram destruídos e nas memórias dos agentes do apartheid sul-africano que ainda hoje se recusam a testemunhar. Os seus túmulos são as dunas do deserto, as falésias rochosas e as ondas do oceano Atlântico. Os seus fantasmas habitam as florestas do planalto central, as areias do deserto, o mar e o céu.
O de Augusto Zita ainda caminha pelo deserto e habita as ruínas das suas casas de cantoneiros. O nosso passado está conosco no presente e levá-lo-emos como memória viva, escrita ou cantada, para o futuro.
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